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in Byzantion Nea Hellás
Repensando a ideia de helenização: revisitando o caso de 2 Macabeus
Resumen:
O presente artigo visa analisar o conceito historiográfico de “helenização” à luz do livro de 2 Macabeus e da realidade histórica do judaísmo helenístico. O tema central desta investigação, portanto, é a relação entre os judeus e a cultura grega no período helenístico, a fim de averiguar a validade do termo “helenização” para expressar a situação deste contexto histórico. O autor, após explicar o uso específico do termo grego Ἑλληνισμός em 2 Macabeus como o modo de vida grego imposto sobre a cultura judaica (Ἰουδαϊσμός), analisa como o próprio livro de 2 Macabeus e a realidade histórica contradizem a oposição que o autor de tal livro propõe aos termos.
Introdução
Nota 1
Recentemente, César Motta Rios (2017 ) apresentou um excelente artigo a respeito do judaísmo helenístico, demonstrando como é problemático se definir tal conceito, seja cronologicamente, seja pela relação com a cultura grega. De fato, a realidade histórica é muito mais fluida e complexa do que os termos historiográficos – tais como “judaísmo helenístico” – parecem indicar. Mesmo assim, como bem indicado por Rios, devemos reconhecer a necessidade que temos de tais expressões para definirmos elementos históricos.
O uso de conceitos historiográficos, porém, deve ser realizado com uma consciência crítica, não somente na reflexão a respeito da relação dos termos com a realidade histórica, mas também pelo conhecimento e averiguação das fontes, que servem como ferramentas de precisão para a calibração da balança conceitual de cada historiador. Sendo assim, uma das principais fontes judaicas do chamado “judaísmo helenístico”, o livro de 2 Macabeus, pode servir como um importante meio de reflexão conceitual a fim de verificar a realidade histórica por trás e para além não somente da expressão “judaísmo helenístico”, mas também do conceito de “helenização”, ainda mais abrangente.
1. “Helenização” em 2 Macabeus
Apesar do conceito de “helenização” ter tido grande força e expressão na historiografia, especialmente com a ideia de “helenismo” propagada por Johann Gustav Droysen 2 e a própria expressão “helenização”, utilizada por Arnaldo Momigliano 3 , trata-se de um conceito estabelecido sobre uma exceção histórica. Afinal, mesmo que houvesse certa imposição de influência cultural por parte dos gregos sobre os orientais no período helenístico, tal sentido do termo “helenismo” (Ἑλληνισμός) somente aparece em um trabalho que, segundo o próprio Momigliano, é “algo único na historiografia antiga” ( Momigliano, 1975 b, 81): o livro de 2 Macabeus.
Diferente da grande maioria dos casos da Antiguidade, nos quais o termo Ἑλληνισμός é utilizado ou como o uso correto da língua grega 4 , ou como o grego do mundo helenístico, denominado κοινή 5 , em 2 Macabeus ele aparece como expressão do modo de vida grego ( Himmelfarb, 1998 , 24), o qual é imposto sobre os judeus, os quais são defendidos por aqueles que, pela Revolta dos Macabeus, tomam o partido do “judaísmo” (Ἰουδαϊσμός) – termo que aparece neste contexto pela primeira vez na história 6 . Assim, como bem indicou Steve Mason, “Ἰουδαϊσμός parece ter sido cunhado em reação ao Ἑλληνισμός cultural, que o autor [de 2 Macabeus] também deve ter sido o primeiro a usar em sentido de ‘helenização’” ( Mason, 2007 , 464). Mas, será que deve-se falar em “helenização” ou “helenismo”, como uma força impositiva da cultura grega sobre as demais no período helenístico? Será que o livro de 2 Macabeus acompanha a realidade histórica em sua oposição drástica entre um Ἑλληνισμός imposto e um Ἰουδαϊσμός resistente?
Mesmo que 2 Macabeus passe uma ideia do helenismo (Ἑλληνισμός) como imposição, se pode perceber, dentro do próprio relato, a existência de uma efetiva participação judaica na entrada do Ἑλληνισμός na Judeia 7 , ou seja, se deve considerar a possibilidade não somente de “judeus helenizados” 8 mas também de “judeus helenizantes” 9 . Neste sentido, “helenização” também poderia ser compreendida como “um movimento político” que, como bem define Uriel Rappaport, “se esforçou para alcançar certos objetivos”, não somente suplantando o sumo sacerdócio de Onias III – seja com Jasão ou com Menelau 10 – mas também estabelecendo Jerusalém como uma cidade grega ( Rappaport, 1992 , 1).
Deste modo, mesmo que os judeus helenizantes fossem diferenciados pela adoção de costumes gregos, pode bem ser que seus objetivos fossem “primariamente políticos do que culturais” ( Rappaport, 1992 , 1), mirando não contra a tradição judaica, mas contra o poder dos Oníadas 11 . A “helenização”, portanto, mais do que um objetivo religioso ou cultural, poderia ser antes uma consequência de suas posições e ações políticas 12 .
2. Os judeus e a cultura helenística
A relação entre os judeus e a cultura helenística, portanto, não é algo simples. Esta relação foi marcada por diversas atitudes, de modo que “muito da história da civilização judaica no mundo Greco-Romano pode ser visto como uma luta para definir como exatamente os judeus deveriam se relacionar com esta cultura estrangeira” ( Bohak, 2000 , 351). Entre a completa negação e a absoluta adesão à cultura grega, há uma gama de possibilidades e formas de interações que não somente marcaram a grande maioria do povo judeu, mas também pode ter sido o espaço dentro do qual os indivíduos pertencentes àqueles grupos aparentemente opostos estiveram. Talvez as intenções que dividiam as poderosas famílias judaicas (dos Oníadas, Tobíadas, Simônides e Asmoneus) fossem mais econômicas e políticas que de fato culturais, apesar do que foi transmitido pelos relatos do contexto, a exemplo de 2 Macabeus.
Também, a usual tendência da grande maioria dos povos orientais de não negar completamente nem aderir completamente aos modos de vida gregos 13 parece contrariar a proposta de uma polarização distante entre os grupos judaicos do contexto macabeu 14 que 2 Macabeus apresenta. Afinal, se havia uma imposição da cultura grega sobre a cultura judaica, qual a razão do mesmo não ter ocorrido em outros contextos e com outras culturas? É mais provável que tal “imposição” tenha sido muito mais uma fusão cultural que, aos olhos de determinados grupos judaicos, foram vistos como imposição, ou ainda foram assim definidos a fim de se defender a própria revolta cuja “bandeira” era a defesa do judaísmo frente ao helenismo imposto. Afinal, a completa oposição entre judaísmo e helenismo é refutada pelo próprio livro de 2 Macabeus que, além de ter sido escrito em grego 15 , carrega dentro de si aspectos próprios da cultura grega, que afetam não somente a forma do livro, mas também indicam uma intencionalidade, influenciando seu método e estilo, por exemplo, de modo que “a forma literária grega de 2 Macabeus representa mais que uma influência grega superficial” ( Himmelfarb, 1998 , 20). Assim, considerando a influência grega e a ideologia transmitida pela própria obra, 2 Macabeus se configura em uma contradição: “é ao mesmo tempo judaica em sua piedade, e grega em seu modo de expressão” ( Himmelfarb, 1998 , 20).
A ideia de uma oposição absoluta entre dois grupos opostos – um “helenizante” e outro “tradicionalista” – também é refutada pela própria realidade histórica. Mesmo que se possa pensar, a partir da leitura de 2 Macabeus, que a Revolta dos Macabeus teve como propósito principal a eliminação do Ἑλληνισμός da Judeia e da cultura judaica, a Revolta dos Macabeus, tal como as demais revoltas orientais, não buscou separar completamente a cultura nativa do Ἑλληνισμός. Afinal, “apesar das revoltas orientais se constituírem numa reação nacional contra a casa Selêucida, elas estavam longe de implicar em um completo divórcio das formas políticas e aspectos culturais do helenismo” ( Coyne, 1912 , 600), e o caso judaico não foi exceção: a dinastia dos Asmoneus, que subiu ao poder com a Revolta, não apenas foi marcada por fortes influências gregas 16 , mas também parece ter surgido sem uma verdadeira pretensão de distanciamento da cultura helênica 17 .
3. Os Asmoneus e a cultura helenística
Os Asmoneus não foram marcados somente pelo amplo uso de nomes gregos 18 , mas também por um uso mais profundo do próprio Ἑλληνισμός em sua política 19 , ao ponto de Arnaldo Momigliano (1975 a, 114) poder afirmar que “em termos de organização política e econômica, os judeus estavam certamente mais helenizados depois da Revolta dos Macabeus do que antes” 20 . Tal “helenização” pode ter chegado inclusive ao ponto de João Hircano e suas tropas se juntarem a Antíoco VII em uma campanha contra os partos, conforme o relato de Josefo 21 , já em 131-129 a.C. 22 .
Seja como for, a cunhagem de moedas dos Asmoneus 23 reflete uma influência helênica e selêucida, não somente nas imagens representadas – como a rosa, o lírio, a cornucópia, a grinalda, a [folha de] palma, o diadema, a estrela e a âncora 24 (cf. a tabela 1 abaixo) –, mas também com o uso, mesmo que esporádico, de monogramas e letras gregos 25 .
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Nota 26
Dentre todas as cunhagens dos Asmoneus, certamente a mais claramente influenciada por elementos da cultura helênica foi a estabelecida sob o reinado de Alexandre Janneu 27 , marcada não somente pela retomada do uso da âncora invertida (comum na cunhagem selêucida 28 e também na cunhagem de João Hircano 29 , sendo depois somente retomada por Janneu), mas também por inscrições em grego, a exemplo de uma moeda de bronze de Alexandre Janneu, moeda com uma estrela de oito pontas e uma inscrição em hebraico (“o rei Yehonatan”) de um lado, e uma âncora invertida ao centro com inscrição em grego (BAΣIΛEΩΣ AΛEΞAN∆POY) do outro 30 . Tais cunhagens expressam uma política fortemente influenciada por aspectos da cultura grega, marca principal do reinado de Alexandre Janneu.
Levando em consideração que nenhum rei governa sem apoio da sociedade, seja das massas populares ou da elite social, pode-se dizer que é bem provável que suas ações de “helenização” não somente tenham contado com apoio de um número considerável de judeus, mas talvez até mesmo fossem realizadas visando tal aprovação – o que supõe a existência de judeus que, se não eram defensores da incorporação da cultura grega como um todo, eram pelo menos adeptos da incorporação de elementos específicos, a exemplo da língua grega, justificando o fato de que no século primeiro o grego já estava presente, na Palestina, “no comércio e nos negócios, mesmo pelos menos educados, num grau muito maior do que os estudiosos têm assumido” (Jaeger, 2002, 18, nota 7) 31 .
Sendo assim, se de fato antes da Revolta dos Macabeus houve uma luta cultural “pelas mentes e corações” dos judeus, como definiu Ranon Katzoff (1985, 489), pode-se pensar que mesmo após a vitória dos Macabeus o grupo dos judeus helenizados “permaneceu como um fenômeno cultural e o próprio processo de organização política serviu como um fator importante na sua difusão”, como indicou Victor Tcherikover (1959, 249-250). Afinal, em boa medida o evergetismo 32 , característico do mundo helenístico (marcando forte presença no contexto romano 33 ), foi marca não somente de Onias III, o “benfeitor da cidade [εὐεργέτην τῆς πόλεως]” (2 Mac 4.2), mas também dos Asmoneus 34 , o que indica a presença de judeus helenizantes mesmo depois da Revolta, apoiando estas medidas e tornando-as possíveis.
Considerações finais
O estudo aprofundado da relação entre a cultura helenística e os judeus no período helenístico e no livro de 2 Macabeus deixam claro que a realidade histórica foi muito mais fluida e complexa do que o autor de 2 Macabeus indicou. Ao mesmo tempo, apesar de ser historicamente problemático, o termo “helenização”, assumido como uma interpretação e sentido específicos do termo grego Ἑλληνισμός, pode ser repensado a fim expressar mais fielmente a realidade histórica ao invés da imagem que costuma carregar. Por fim, tal estudo permite também que se perceba que o helenismo, ou helenização, compreendido como a troca cultural dentro do mundo greco-romano serviu não somente para o encontro com o “outro” 35 , mas também na construção de identidades do próprio “eu” coletivo, decorrente deste contato, seja pela aproximação ou ainda pela oposição.
Resumen:
Introdução
1. “Helenização” em 2 Macabeus
2. Os judeus e a cultura helenística
3. Os Asmoneus e a cultura helenística
Considerações finais